terça-feira, 2 de agosto de 2011

A chacina do Ramadã

O Estado de S.Paulo
Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos, começou ontem na Síria com novos atos de violência do regime de Bashar al-Assad contra civis desarmados na cidade de Hama, de cerca de 800 mil habitantes - onde, há 29 anos, as forças do ditador Hafez Assad, pai do atual, exterminaram mais de 10 mil moradores para esmagar um levante islâmico. "A história se repete, a história se repete", clamava ao celular um ativista entrevistado por jornalistas ocidentais baseados em países vizinhos. O massacre de 1982 foi provavelmente o pior da história recente no Oriente Médio, que não é bem um oásis de paz, liberdade e direitos humanos.
No domingo, forças de segurança e as temíveis tropas paramilitares Shabibiha (fantasmas), apoiadas por blindados e artilharia pesada, entraram em Hama e dispararam a torto e direito, matando perto de 80 pessoas. Outras 60, aproximadamente, foram abatidas em diversos pontos do país. Os ataques recomeçaram ontem cedo, quando os fiéis voltavam das suas orações matinais nas mesquitas da cidade. Para Damasco, os protestos populares contra a tirania, que irromperam em meados de março, seriam protagonizados por "gangues armadas", a serviço de uma imaginária conspiração de fundamentalistas e "potências estrangeiras".
A chacina do Ramadã não surpreendeu os opositores do regime. Eles próprios haviam anunciado uma escalada de manifestações noturnas de rua, depois do jejum diário no período. O que chama a atenção nesta fase de recrudescimento das atrocidades é a aparente coesão política do regime para continuar abatendo os cidadãos. Antes do domingo sangrento em Hamas, 1.634 sírios teriam sido mortos, segundo o movimento insurgente Avaaz. O grupo contabiliza 2.918 desaparecidos e 26 mil detidos, dos quais 12.617 continuam presos. Cerca de 10 mil pessoas conseguiram fugir para a Turquia.
Fala-se cada vez mais em deserções de soldados - e há imagens de recrutas confraternizando com ativistas. Mas, pelo pouco que se sabe dos bastidores do poder nesse país de 22,5 milhões de habitantes, fechado a jornalistas e observadores internacionais, a elite militar permanece leal ao clã Assad, cujo titular herdou o poder ditatorial há 11 anos. Uns e outros, assim como as famílias políticas que controlam o partido oficial Baath, dono do país há quase meio século, a plutocracia comercial e o mandarinato da burocracia civil, pertencem à seita alauita ou a grupos cristãos a eles associados.
Chega a ser surpreendente a capacidade de resistência das forças democráticas à impiedosa repressão de que têm sido alvo - e, mais ainda, a sua teimosia. O que se passa na Síria, em escala e duração, não se compara aos levantes na Tunísia e no Egito, onde vicejou a chamada Primavera Árabe e onde os militares se recusaram a chacinar os civis, levando à ruína os respectivos regimes ditatoriais. Tampouco o caso sírio se compara ao da Líbia, cujo autocrata Muamar Kadafi não perdeu de todo o apoio popular e resiste a mais de quatro meses de bombardeios ocidentais.
Diferentemente de Kadafi, também, Assad não é anátema para ditadores árabes como os da Arábia Saudita. Eles endossaram a resolução do Conselho de Segurança (CS) da ONU que deu origem à intervenção armada da Otan na Líbia, mas até dias atrás ainda relutavam em concordar com a adoção de sanções severas a Damasco. O próprio presidente dos EUA, Barack Obama, cumpre o ritual de denunciar Assad a cada surto repressivo, mas não foi a ponto de demandar a sua destituição. A importância estratégica da Síria no Oriente Médio exclui de antemão qualquer ato capaz de mergulhar o país numa conflagração de consequências imprevisíveis.
De todo modo, os EUA e a União Europeia vêm tentando em vão arrancar do CS ao menos uma condenação formal do regime sírio. Enfrentam o desinteresse da Rússia, da China e de três dos seus membros não permanentes: Brasil, Índia e África do Sul. A posição brasileira, criticada duramente pela Anistia Internacional, é incoerente com a decisão de condenar o Irã na ONU por violação dos direitos humanos.

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